terça-feira, 30 de novembro de 2010

Pensando um pouquinho na vida

As vezes é bom parar e pensar um pouquinho na vida. O que ja vivemos, sonhos, planos, frustrações. O futuro? o que é? o que nos aguarda lá na frente?

Um texto de Rubem alves que faz a gente parar e pensar um pouquinho é esse:

EU
Ao fim de uma entrevista, a entrevistadora me pediu: "Rubem Alves em uma frase ...". O pensamento voou até que parou num verso de Robert Frost que seria o seu epitáfio: "Ele teve um caso de amor com a vida ...".
Nos quarenta anos em que peregrinou pelo deserto, o povo de Israel, segundo conta a estória, foi alimentado por um alimento que caía dos céus durante a noite. As pessoas tinham permissão para colher desse alimento, o maná, na medida de suas necessidades. Só para o dia. Alguns, com medo de que o maná não caísse no dia seguinte, colheram em dobro, por via das dúvidas... Mas, quando foram comer o maná poupado, viram que ele estava apodrecido, cheio de bichos. Talvez isso queira dizer que a vida há de ser colhida diariamente. Quem deseja economizar o hoje para o amanhã fica com a vida apodrecida nas mãos.
Meus sonhos? Sonho em ter tempo para curtir as montanhas e cachoeiras das Minas Gerais. Sonho em ter tempo para vagabundear. Sonho em ter tempo para brincar com minhas netas. Sonho em escrever uns livros que estão na minha cabeça e que não consigo escrever por falta de tempo.
O que tenho sentido? Beleza. Nostalgia. Tristeza. Cansaço. Urgência. A curteza do tempo. Um enorme desejo de passar uns tempos num mosteiro, longe de cartas, telefones, micros, viagens, e-mails, curtindo a solidão e a ausência de obrigações.
Quanto maior a beleza, maior também a tristeza. A beleza em solidão é sempre triste. Beleza solitária dá vontade de chorar. Para ser boa, a beleza exige, pelo menos, dois pares de olhos tranquilos se olhando, dois pares de mãos amigas brincando, e bocas de voz mansa sussurrando.
Cada momento de alegria, cada instante efêmero de beleza, cada minuto de amor, são razões suficientes para uma vida inteira. A beleza de um único momento vale a pena de todos os sofrimentos.
A alma é uma cigarra. Há na vida um momento em que uma voz nos diz que chegou a hora de uma grande metamorfose; é preciso abandonar o que sempre fomos para nos tornarmos outra coisa: "Cigarra! Morre e transforma-te! Saia da escuridão da terra. Voa pelo espaço vazio!".
"A cobra que não consegue livrar-se de sua casca morre. O mesmo acontece com os espíritos que são impedidos de mudar as suas opiniões; eles deixam de ser espírito." (Nietzsche)
Se eu morrer agora não terei do que me queixar. A vida foi muito generosa comigo. Plantei muitas árvores, tive três filhos, escrevi livros, tenho amigos. Claro, sentirei muita tristeza, porque a vida é bela, a despeito de todas as suas lutas e desencantos. Quero viver mais, quero terminar a minha sonata. Mas, se por acaso ela ficar inacabada, outros poderão arrumar o seu fim. Assim aconteceu com a Arte da Fuga, de Bach (1685-1750). O tema eram as notas de seu próprio nome, BACH, si bemol, lá do si natural. Na última página do manuscrito, letra de Carl Philip Emanuel, filho de Bach, está escrito: "NB: no curso dessa fuga, no ponto em que o nome B.A.C.H. foi introduzido como contratema, o compositor morreu". Bach morreu, mas a obra ká estava claramente estruturada. Foi possível a um outro terminá-la. Se o mesmo acontecer comigo, não terei do que me queixar. Mas fica a pergunta: e aqueles que não tiveram tempo para escrever o seu nome?
Ja me fiz essa pergunta várias vezes, pensando nos meus filhos. Eu também queria que eles levassem as suas sonatas até o fim, mesmo que eu não estivesse aqui para ouvi-las. Mas não se pode ter certezas. A possibilidade terrível sempre pode acontecer. E se ela acontece vem o sentimento terrível de que tudo foi inútil.
O que tenho ouvido: César Frank, Mozart, Bach, Beethoven, Chopin, Schumann. Cantigas de roda. A arca de Noé. "A valsinha". Poemas de Fernando Pessoa lidos-recitados no delicioso sotaque português.
Ouvir música é encontrar-me com a beleza que existe dentro de mim. Se Narciso, em vez de se deixar fascinar pela beleza visual se tivesse deixado fascinar pela beleza musical, acho que não teria tido o fim trágico que teve.
O que tenho pensado? Penso tanta coisa que não é possível dizer o que tenho pensado. Penso que o tempo está passando. Penso que o mundo está cheio de beleza. Penso que não quero morrer. Penso que quero morrer. Penso que, se Deus tivesse pedido meus conselhos, o mundo seria melhor.
O que tenho lido: manuel de Barros, Fernando Pessoa, Mia Couto, o livro do Eclesiastes, o mais sábio, o livro do Cântico dos Cânticos, o mais erótico. Unamuno, Nietzsche, os manuscritos que estou escrevendo, centenas de cartas e emails.
Minha alma é um quarto onde os objetos mais estranhos estão colocados sem ordem, sem nenhuma intenção de fazer sentido.
Dizem que 99% da população brasileira acredita em Deus. Eu acrescento: 100% da população dos infernos também acredita em Deus. Acho que Deus morre de rir quando lê pesquisas desse tipo. Ri dos sociólogos tolos que fazem questionários tolos, e dos tolos que dão respostas tolas a perguntas tolas. Deus é um grande silêncio.


Fica aí mais uma contribuição de Rubem Alves para pensar um pouquinho.

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